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"O Japão conhece o horror da guerra e sofreu como nenhuma outra nação sob a nuvem de um desastre nuclear. Certamente, o Japão pode permanecer forte por um mundo de paz", diz Martin Luther King Júnior, pastor batista, ativista político americano, Nobel da Paz em 1964 pelo combate à desigualdade racial.

Por Valério Fabris

Em termos econômicos, o Japão está mundialmente em terceiro lugar, superado pelos Estados Unidos (1º) e pela China (2ª). Foto: Freepik

O país superou o ciclo das guerras internas com a força advinda do subsolo de sua muito enraizada e disseminada cultura espiritual, milenarmente resultante da soma de um intrincado hibridismo religioso. Ou seja: de uma mistura advinda da superposição do vasto leque de tradições e práticas espirituais, em uma fertilização cruzada que foi se entranhado na alma do povo japonês à medida em que se acentuavam os sanguinários embates, como os da era medieval, no período 1185/1603.

Tal caldo da cultura espiritual permanece suavemente vivo no Japão de hoje, em um espaço de tempo de 420 anos, contados a partir do fim da Idade Medieval. A porosa rede das várias religiões medievais trouxe consigo um conjunto de divindades de deuses locais. O Japão era, do lado dos seguidores das múltiplas correntes espirituais, a terra dos deuses. E, do
lado dos senhores feudais (que se digladiavam com as espadas e armaduras de seus samurais), o Japão era a terra de demônios.

A história do Japão, até o século XIX, foi pontilhada de conflitos internos. Sangrentos embates espaçadamente aconteceram mesmo antes da era medieval. Mas já faz quase oitenta anos (isto é, desde o fim da Segunda Guerra Mundial), que o Japão gradativamente foi se projetando como a grande referência global de uma país próspero e pacífico. Com invejáveis coesão comunitária e bem-estar social, tornou-se a terceira maior economia do planeta, ultrapassada apenas pelos Estados Unidos e pela China.

"Falo do velho Japão porque, das cinzas do velho Japão, surgiu um novo Japão."
SHIGERU YOSHIDA, diplomata e ex-primeiro-ministro (1946/1947 e 1948/1954)

Além de superar o longo período de lutas civis e senhoriais, os japoneses conseguiram o feito de contornar as adversidades inerentes a uma fragmentada geografia. O território nacional é a soma de quatro ilhas principais e mais 3,9 mil ilhas menores, somando uma área total de 378 mil quilômetros quadrados, sendo que 85% do solo é ocupado por montanhas. Em todo
arquipélago restam apenas 15% de solo agricultável.

Comparativamente, o território brasileiro é 22,5 vezes maior do que o do Japão (o 62º do mundo). No ‘ranking’ populacional, o quinto é o Brasil; o Japão, o décimo-primeiro. Porém, em termos econômicos, o Japão está mundialmente em terceiro lugar, superado pelos Estados Unidos (1º) e pela China (2ª). Depois do Japão (3º), vêm a Alemanha (4º), o Reino Unido (5º), a França (6º), Índia (7º), a Itália (8º), o Brasil (9º) e o Canadá (10º).

Os japoneses são importadores de cem por cento dos minérios que abastecem suas indústrias (entre eles, ferro, cobre e bauxita). Também são inteiramente dependentes da importação de trigo, milho, café em grão, soja em grão, farelo de soja, carnes bovina e de frango, açúcar, celulose, papel.

Em contrapartida, exportam automóveis e navios, instrumentos de ótica de precisão, semicondutores e demais artigos de informática, produtos químicos, aço, reatores nucleares e caldeiras, equipamentos eletrônicos e ópticos, ferro e aço, plásticos.

O Japão projetou-se, ainda, como um dos mais expressivos centros financeiros globais. O Mitsubishi UFJ Financial Group é o maior banco do país, com ativos no valor de US$ 2,8 trilhões e capital do mais alto nível, de US$ 146 bilhões em 2019.

Completando a lista dos cinco maiores bancos, cabe citar o Sumimoto Mitsui Financial Group, o Mizuho Financial Group, o Japan Post Bank e o Norinchukin Bank (este atuando como a principal instituição financeira voltada as áreas agrícola, pesqueira, florestal e cooperativista).

"O Japão não é uma democracia ocidental. Os japoneses mantiveram suas tradições, cultura e herança, mas se juntaram à comunidade de nações livres".
NATAN SHARANSKY, político israelense, escritor, ativista dos direitos humanos.

Nos últimos 150 anos, a imagem dos japoneses deixou de ser a dos cruéis samurais e gradativamaente passou a ser a da massa humana ultracivilizada. Em lugar das armaduras e das espadas mortais, hoje tornaram-se predominantes, na cena cotidiana do país, as atitudes de respeito e reverência ao próximo. Em lugar das armaduras e das espadas mortais, o que predomina no dia a dia são as atitudes de respeito e reverência ao próximo.

Esta é uma das maiores evidências planetárias (a partir do exemplo japonês) de que cultura não é destino, muda-se. Substitiu-se a cultura da perversão (que se alimenta no prazer do sofrimento alheio e da transgressão das normas do convívio saudável) pela cultura da empatia.

Isto é, pela cultura de, frequentemente, se colocar no lugar do outro. O dicionário assim define, psicologamente, a empatia: “Tendência para sentir o que sentiria caso estivesse na situação e circunstâncias experimentadas por outra pessoa”.

"Doadas pelo Japão, flores de cerejeira enfeitam os caminhos onde antes ficava um muro em Berlim. Paredes dividem. As flores se unem".
KHANG KIJARRO NGUYEN, fotógrafo, ‘performer’, isto é, artista que realiza performance

Lastreado na cultura do bem-estar social, o atual primeiro ministro do Japão, Fumio Kishida (presidente do Partido Liberal Democrata) está empenhado em, até 2050, criar “uma sociedade espiritualmente ainda mais rica e dinâmica, aumentando a paz de espírito e a vitalidade mentais”, conforme escreveu a socióloga Makiko Eda, chefe do Escritório de Representação do World Economic Forum, em Tóquio.

Ampliar ainda mais o bem-estar, no Japão, é um objetivo que faz parte do “propósito de vida” do primeiro ministro, como acrescentou Makiko Eda. A socióloga Makiko Eda vê um espaço aberto, na sociedade japonesa, para que se realize o compromisso do primeiro ministro Fumio Kishida de investir “em capital humano” e “pessoas”. No Japão, como acrescentou ela, há uma tendência predominante de se colocar o objetivo do “bem-estar inclusivo” acima da riqueza material.

Trata-se, como assinalou a integrante da cúpula do World Economic Forum, de uma ideia que está influenciando “as estratégias e ideias dos negócios tanto das empresas quanto das organizações”.

"Não sou uma pessoa da nova era, mas acredito na meditação. Por isso, sempre gostei da religião budista. Quando fui ao Japão, estive em templos budistas, e meditei. E achei isso gratificante"
CLINT EASTWOOD, cineasta, produtor e compositor

A imagem que o Japão transmite ao mundo, sobretudo a partir dos turistas que visitam o arquipélago das milhares de ilhas, é a de um país que comunitariamente floresceu no território antes beligerante, dos senhores das terras e seus samurais. Do lado da cultura, o que prevaleceu acabou sendo a ética do hibridismo religioso.

Hoje, ainda há no país uma profusão de minoritárias correntes espirituais, entre elas a confuncionista e cristã. Mas as duas correntes majoritárias são o budismo (originário da Índia) e o xintoísmo (originário do Japão), ambas as religiões simultanemante praticadas por 80% da população nacional.

É habitual que essa grande maioria frequente ambos os cultos, os dos santuários xintoístas e os dos templos budistas. O confuncionismo expressa o denominador comum de todas as
vertentes espirituais. Sua mensagem é a que os seres humanos são fundamentalmente bons, ensináveis e aperfeiçoáveis, por meio de esforço pessoais e comunitários. O mundo organizado é resultado do incessante cultivo diário da virtude.

Não é por acaso que os turistas impressionam-se quando frequentemente veem nas ruas os gestos educados e corteses advindos de japoneses e japonesas. A pontualidade é levada muito a sério. O tom de voz é sempre moderado. Não tentam interromper a fala do interlocutor; ouvem com atenção.

Jamais invadem o espaço do outro, sem abraços e apertos de mãos. Não se espalham nos assentos dos trens. Deixam o lugar disponível ao outro que pode chegar. Rejeitam os perfumes fortes; optam pelos aromas sutis. Não furam fila. Não comem um sanduíche ou e ou tomam um sorvete enquanto caminham.

"O Japão é muito interessante. Algumas pessoas acham que o japonês copia as coisas. Eu não acho mais isso. Acho que o que eles fazem é reinventar as coisas. Eles pegarão algo que já foi inventado e o estudarão até entendê-lo completamente. Em alguns casos, eles entendem melhor do que o inventor original"
STEVE JOBS, CO-FUNDADOR, presidente e diretor-executivo da Apple Inc

Nas cidades entre montanhas e à beira-mar, falta espaço. Na faixa de terreno entre um prédio e outro, plantam-se legumes e hortaliças. A cidade cresce para baixo, até mesmo com shopping centers subterrâneos. O tamanho médio dos apartamentos é de 70 metros quadrados. Ao término das aulas, os próprios alunos limpam suas carteiras e salas.

A lealdade entre patrões e funcionários é tanta que os vínculos empregatícios se tornam vitalícios. As calçadas são largas, e o acesso a elas é facilitado por rampas de leve declínio. Os trens não atrasam sequer um minuto, nem na partida nem na chegada.

O Japão de hoje não tem nada a ver com um país dominado por temíveis senhores feudais e guerreiros cruéis (samurais). Lá, o senso comum é o de qualquer país pode seguir a trajetória do Japão, que se iniciou como a terra dos demônios e se transmutou na terra dos deuses. É fácil. Basta se dar conta de que o outro existe e é humano.

O arquipélago é um exemplo de bom trato ambiental, social e econômico. Mas há uma ressalva: os plásticos

O auge do milagre econômico japonês ocorreu, a partir do fim da II Guerra Mundial (em 2 de setembro de 1945), até à dissolução da União Soviética (em 26 de dezembro de 1991). É a partir deste período que a produção e o consumo de plástico começaram a desenhar uma curva exponencial. O primeiro plástico totalmente sintético, derivado de resinas do petróleo, foi criado em 1907 pelo químico belga Leo Baekeland (1863-1944).

É por causa do indiscriminado do plástico que o Japão atualmente deixa de ser uma insuperável referência socioeconômica para o mundo. Mas, mesmo assim, situa-se entre os mais destacados países seguidores do tripé das almejadas melhores práticas destes campos: 1) ambiental (environmental), 2) social e 3) governança.

Ao preencher tais pré-requisitos, os setores públicos e privados encontram as portas do sistema bancário abertas aos financiamentos de seus projetos. O ESG é, portanto, um conjunto de padrões e de boas práticas que visa a definir se uma empresa é socialmente consciente, se adota procedimentos ambientalmente sustentáveis, e se é correta e transparentemente gerenciada.

Cunhou-se pela primeira vez o termo ESG em 2004. Acabou espalhando-se pelo mundo. No Brasil, o termo ESG começou a ser mencionado a partir de 2018. “Os pontos fortes do Japão, sobretudo nos aspectos sociais do conceito ESG, são muito anteriores às mudanças atuais em direção ao investimento sustentável”, diz Masaki Taketsume, gestor de fundos de ações na Shroders, em Tóquio. A Shroders é uma empresa britânica de gerenciamento de ativos, fundada em 1804.

A visão de que empresas nipônicas há tempo já intuitivamente adotavam o conceito que, mais tarde, veio a ser explicitado e praticado por meio do termo ESG, evidencia que no Japão é comum o horizonte de longo prazo.

Dizia Akio Morita, o co-fundador, que faleceu em 1999, aos 78 anos de idade: “Os Estados Unidos olham dez minutos à frente. O Japão olha dez anos à frente”. Ele assinalava que os japoneses geralmente não disputam acirradamente o mercado que almejam. Optam pelo “soft power” (poder suave): “A cooperação fala mais alto do que a rivalidade”.

A cultura da gentileza e da higiene produz danoso efeito colateral: o Japão ficou inundado de plástico

A imprensa europeia recorrentemente veicula reportagens e artigos sobre essa cordialidade e assepsia japonesas, com as quais se reverenciam o próximo e o protegem de infecções, mas têm produzido efeitos que não estavam prescritos na milenar cultura nipônica, carregada de asseio e gentileza.

A BBC, corporação pública de rádio e televisão do Reino Unido, assim como vários influentes veículos da imprensa mundial, tem reiteradamente abordado o tema. O que está em questão é o excessivo uso do plástico.

Em artigo veiculado na plataforma online da BBC, no dia 24 de agosto de 2002, a partir de Tóquio, assim escreveu a jornalista Melinda Joe, sobre a tradição de embrulhar objeto, seguindo-se a convenção de zelar pela satisfação e saúde do cliente, no varejo de alimentos.

“As pessoas querem ter a certeza de que a comida está protegida, não machucada ou suja.A noção de limpeza é muito importante aqui”. Outra jornalista, Marie Borgers, publicou no dia
6 de maio de 2022, na plataforma online da VAYAPON, mídia focada em inusitados roteiros turísticos japoneses, aqueles fora do lugar comum.

Ela relata que, nas compras de frutas e legumes tudo já está embrulhado nos transparentes filmes plásticos. “Frutas e vegetais são embalados em plásticos, em porções uniformemente de duas, três ou mais unidades, e assim dispostas nas prateleiras. Além de serem embrulhadas em plástico, os conjuntos das frutas ou dos legumes adquiridos são, no caixa, também protegidos por uma rede de poliéster.

Os nacionalmente disseminados e enraizados valores da pureza e limpeza vêm do xintoísmo, que é a religião oficial do Japão. Na cultura japonesa, são atitudes reprováveis não tirar os sapatos antes de entrar em casa, comer algo enquanto caminha na rua ou se está no trem, não tomar banho antes de entrar em uma fonte termal. O minimalismo, a modéstia e
a simplicidade vêm de outra religião, o budismo, que geralmente os japoneses seguem ao mesmo tempo em que cultuam o xintoísmo.

Narrativas sobre o rotineiro e excessivo consumo de plástico no Japão têm sido veiculadas na imprensa americana e europeia. O país é o nono maior gerador de resíduos plásticos, segundo dados do WWF/Banco Mundial. Recicla 5,68% desse volume. (O Brasil é o quarto gerador de lixo plástico, e recicla 1,28%).

De acordo com notícia veiculada pelo jornal britânico Financial Times (FT), o governo japonês informou que reciclou 84% das 8,9 milhões de toneladas de resíduos plásticos que foram gerados em 2018. “Mas esse número inclui 56% de seus resíduos plásticos que são queimados em incinerados, com vistas à produção de energia”. No texto do FT faz-se a ressalva que essa queima provoca a emissão de dióxido de carbono.

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