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A cozinheira potiguar explica que a criatividade é um elemento processual e que deve ser aliada à gestão, análise de tendências e branding para impulsionar bares e restaurantes

Em seus pratos, Irina traz criatividade e sabores tipicamente nordestinos e ainda explora a estética de um nordeste que não combina com a escassez. Foto: Divulgação

Uma referência na cena gastronômica brasileira, o trabalho de Irina Cordeiro tem ajudado a valorizar e difundir a rica cultura culinária nordestina ao passo que desmistifica a ideia de uma escassez permanente atrelada à região. O amor pela sua origem vem da vivência e é traduzido nessa nova roupagem que exalta a riqueza do nordeste, especialmente em seu restaurante, o Cuscuz da Irina.

No restaurante, em seu trabalho de consultoria e na atuação nas redes sociais, a marca de Irina é pautada no uso da criatividade tanto para lidar com as adversidades do mercado quanto para manter uma originalidade que é sua principal característica.

Qual é a relação entre comida e criatividade? Como tirar isso do papel e colocar na identidade de um restaurante, no seu caso, o Cuscuz da Irina?

Para mim foi um processo muito natural e genuíno. Sempre falo que, dos pilares da criatividade, a escassez é um dos maiores guias. Eu cresci com essa experiência, venho de uma origem muito humilde e sempre tivemos que usar da criatividade para inventar pratos e comidas quando tínhamos realmente escassez de alimentos.

O cuscuz mesmo é tema do meu restaurante. Ele faz parte da minha vivência, minha história, com toda certeza, porque estava ali presente e com fartura nos momentos em que não haviam outros ingredientes. A gente já fez de tudo com cuscuz lá em casa: torta salgada, pão, bolo.

Eu sempre usei muito a criatividade, gostava de desenhar, de pintar, de fazer artes com as mãos, e escrevo poesia desde os dez, doze anos de idade.

Sempre aflorei esse universo artístico, acho que é um facilitador pelo cenário de onde vim. Lá tem uma imersão cultural maior e isso aflora pessoas criativas, com certeza.

Enquanto uma pessoa criativa, como organizar esse fluxo de ideias para sua gestão, para sua identidade, para sua experiência à frente da cozinha?

Nós costumamos achar que criatividade é algo empírico e não processual, o que não é verdade. E eu gosto que os processos sejam bem claros, para que ninguém se perca no meio do caminho e para que possamos ter sempre espaços para estimular a criatividade.

Temos que entender mais e nos aprofundar nas ferramentas que, inclusive, permeiam entre ela e a gestão.

O Cuscuz tem essa identidade porque, antes de qualquer coisa, eu fiz um bom branding. Pesquisamos a história dessa comida, sobre o que era essa história que eu queria contar, se poderia ligar o meu branding pessoal ao do meu restaurante, mas mantendo a noção de serem universos distintos.

Até costumo dizer que o Cuscuz é maior que eu. Eu vou e ele vai ficar, é um grande legado.

E é legal que tenha essa separação, mas uma coisa não mata a outra, você integra com a esfera pessoal. Mas isso não tira o branding que é seu, e o da sua marca também.

Nós temos que usar essas ferramentas de gestão, inclusive, para quando nos depararmos com uma oportunidade ou até com uma exposição específica, podermos dizer: não é por aí, o caminho é outro.

É muito importante, esse poder de decisão, inclusive sobre o universo da criatividade. E um segundo insight muito interessante sobre esse universo, para mim, é justamente sair do óbvio.

Nós ainda tratamos as redes sociais de restaurantes de uma forma muito chata. E as pessoas não querem mais ver o universo chato em nenhum momento, esse já é o dia a dia, a realidade delas.

Então, as redes sociais de uma marca hoje em dia têm que agir como se fossem uma persona mesmo, um ideal de uma pessoa interagindo com o público. Por isso, lá nós colocamos poesias, coisas mais engraçadas e comemoramos datas não óbvias, de uma forma legal.

O instagram é gratuito, mas é bom fazer um investimento de marketing e contratar pessoas antenadas e que vivam esse universo para fazer isso muito bem.

Nós fazemos pesquisas de mercado constantes, observamos as tendências e para onde esse universo está caminhando. A criatividade é mais científica do que algo que realmente pareça um artista plástico pintando uma coisa que nem sabe se vai ser vendida.

E sobre a gestão, existem alguns empresários hoje que não sabem o que é CMV, ou se sabem, não levam muito a sério. E se algum dia fizeram ficha técnica, ficou guardada na gaveta por anos e está completamente defasada. Como você enxerga a questão desses processos?

Eu tenho uma pós-graduação em gestão de processos, uma empresa de consultoria em gestão e negócio desde 2016, fora os anos em que eu trabalhei com outras consultorias.

Tenho um time de expertise nisso e, para nós, quem sobreviveu à pandemia ou foi sorte ou tinha processos na sua empresa. E ainda existe uma banalização no universo dos empreendedores sobre essas questões.

Hoje em dia, existem sistemas operacionais de alto nível, de quatrocentos reais por mês, que fazem relatórios diários e te dão um espelho real da sua empresa.

E eu amo que a minha empresa é cem por cento processual. Nós temos processos para tudo, até de como lavar uma lixeira, porque a absorção tem que ser mais clara para todo mundo.

As pessoas têm que se atualizar, e os próprios sistemas de controle hoje dão aula e treinamento para todo mundo se capacitar. Então é de fácil acesso, e se você quer ter longevidade, se quer crescimento, precisa investir em gestão.

Não basta só ser um bom cozinheiro hoje em dia, porque tem empresas maravilhosas surgindo o tempo inteiro e nós precisamos sobreviver nesse mercado, que tem uma concorrência altíssima.

João Diamante, que foi convidado para o primeiro episódio do nosso podcast, falou muito dessa relação entre o empresário e os profissionais da cozinha. O empresário quer explorar o seu cozinheiro o máximo e ao mesmo tempo o cozinheiro enxerga o patrão como inimigo e não quer se qualificar melhor.

Nós também gravamos com o Gil Guimarães, que falou sobre a importância de se ter um produto seguro, que pague os boletos e assegure essa inovação, e que permite colocar mais tempo em reflexões gastronômicas criativas. Isso também funciona com a sua cozinha? Como você enxerga esse processo?

Hoje eu tenho três empresas: a Irina blogueira, que trabalha com mídias e publicidade, a empresa de consultoria em gestão de negócios e o meu primeiro restaurante, que é o Cuscuz da Irina.

E é preciso sim deixar de romantizar esse ego e essa ideia de que para ser um cozinheiro eu tenho que ter um trabalho autoral e estar o tempo inteiro criando e fazendo coisas.

Nós temos que fazer com que os nossos sonhos trabalhem por nós. Nem o Antônio Bourbon aguentou aquele estilo de vida de cozinheiro louco, quem lê o livro vê.

Não queremos isso para os próximos cozinheiros, e sim que eles tenham uma vida confortável, saudável, ganhando dinheiro com o seu trabalho, tendo tempo livre para sua família, seu bem-estar, e gerando negócios prósperos e de sucesso.

E aconteceu uma grande virada pós-pandêmica em que as pessoas querem mais comida normal. Elas querem comida de vó, comida de casa, comida afetiva.

Hoje em dia, se eu penso em botar uma roupa para ir a um lugar específico em que um garçom vai estar na minha mesa o tempo inteiro falando um, dois minutos para explicar cada prato, nem saio de casa.

Eu quero mesa compartilhada, me divertir com os amigos, música boa, festejar. Fico muito feliz porque isso vai dar oportunidade a esses cozinheiros de entender que a gente tem que voltar ao simples. Simplificar as vidas, as rotinas, as gestões, os ambientes de trabalho.

E a descentralização dos negócios é muito importante. Quando capitalizei para abrir o restaurante, em nenhum momento pensei em fazer algo que dependesse de mim exclusivamente. Eu tenho duas outras empresas, então isso já vai sendo desconstruído.

Eu não poderia abrir um negócio em que precisasse estar lá integralmente, então tem uma descentralização. E também é importante pensar na facilidade de escalonar.

Lembro que quando eu me formei em cozinha, todo mundo queria abrir um restaurante. Eu fui para a internet desde sempre.

Abri minha empresa de consultoria e fui enxergando mercados que eram pouco explorados, e graças a isso eu cheguei onde eu estou. Temos que sair desse óbvio mesmo e pesquisar mercado.

Acho muito massa o movimento social de que, hoje em dia, tem profissão de tudo. As pessoas têm maior liberdade para ser e isso facilita os caminhos. Se você tem uma ideia maluca, faça um estudo de viabilidade, porque talvez essa sua ideia maluca seja genial e tudo que o mercado precisa.

Esse movimento já é muito forte em São Paulo, e Minas também tem um movimento gastronômico fora da curva muito maneiro. E isso vai chegar nas outras regiões.

Então vamos parar de conservar! O conservadorismo já está fora de moda, vamos inovar, ser criativos, fazer. Pensar em comida fora da comida, proporcionar cultura. Eu quero contar a história da minha família, do meu povo, a história do Brasil.

Nosso país tem uma das maiores biodiversidades do mundo. Eu posso contar a história dos ingredientes e ir além de uma comida boa, porque daí a minha mãe faz, a sua deve fazer, muita gente faz comida boa. Temos que buscar o nosso diferencial de mercado.

E sobre essa questão, a identidade se trata de falar de forma honesta e autêntica o que você propõe e cumprir essa expectativa. É muito legal você falar da “comida fora da comida” e tem tudo a ver com uma tendência forte de hoje, de que quem estuda o comportamento dos consumidores já está saindo na frente. Você é uma pessoa que domina muito esse estudo, não é?

Eu amo branding. Antigamente eram vários sinônimos para alma de negócio, e hoje em dia tem esse conceito mais formado.

Quando abri o restaurante, eu queria contar a história do cuscuz e o quanto ele era presente na vida de tanta gente. E a experiência é muito bonita. É um lugar em que a alegria é o que mais reflete, tanto da parte de quem vai quanto de quem trabalha.

É tão simples, que de fora você pensa “é só isso? ” Mas muita gente chora comendo a comida, porque na boca ela lembra da sua história. Ela se identifica com o chão de cimento queimado e manchado que ninguém nunca entende. Eu digo “não quero verniz, quero um chão rústico para as pessoas se identificarem. ”

As áreas externas lembram areia da praia, muito parecido. O lugar é tátil. E as pessoas, quando colocam aquela comida na boca, estão mergulhando na história delas, que ao mesmo tempo é a minha. Eu busquei essa identificação nos detalhes.

E um dos grandes pilares de branding e identidade que eu queria para o restaurante era não ir para o nordeste caricato. Então não vai ter cactos, não vai ter escassez. Não é uma comida sofrida. Queremos alegria, cor, planta viva.

Na mesa temos flores lindas que recebemos todas as semanas, plantas de mata atlântica, tem vida, o nordeste é isso. É essa nova história que eu quero contar. Talvez esse cacto, a seca, essa referência ao nordeste era da minha avó.

Eu venho de outra geração, tive uma educação, tive oportunidade. Estou abrindo um restaurante na Vila Madalena, um dos bairros mais conhecidos do mundo em uma das maiores metrópoles do mundo.

Eu abri um restaurante nesse ambiente, não quero mais vibrar nessa escassez. Eu sou um nordeste diferente, moderno, criativo, inteligente. Intelectual. Eu sou o outro nordeste.

Não tem que ter mais essas associações porque além de serem caricatas e óbvias, são uma redução. O nordestino tem orgulho de dizer “eu sou isso, mas sou muito mais que isso”.

“A desconstrução do nordeste” é um livro lindo, que virou peça, e mostra que a região não é só isso que a mídia tanto explorou e que também é um processo de marketing. Tampouco é só onde você vai passear na praia, é um lugar extremamente cultural.

É o berço da ciência do Brasil, as maiores fontes de pesquisa, de tudo que você imagina, vêm de lá. É um lugar extremamente rico. Cansamos dessa pobreza. Os meus talheres são dourados, eu quero luxo, quero detalhe. As louças são maravilhosas, quero trazer a identificação desse nordestino que viveu isso e que agora quer gozar disso.

A gente agora quer se divertir, comer bem, beber bem, temos dinheiro para fazer isso e é nesse lugar que vamos estar. Quero lembrar das minhas origens, mas de forma ressignificada. Trazendo isso para uma realidade e saindo dessa escassez. Acho que é isso que emociona tanto.

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